sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Pisadela e beliscão

O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremando beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.

Memórias de um sargento de milícias. Aqui.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

Bastão de Simetria

Havia um povo antigo que não era exatamente conhecido por forjarem grandes guerreiros, mas sim por terem entre seus membros exímios artesãos. Muito leva a crer que esse povo, cujo nome foi perdido, tenha legado à história dos povos um artefato chamado "Bastão de Simetria".
    Herdado a outro clã após uma batalha e consequente conquista de território, após fluxos migratórios dos povos nômades, com registros em mais de uma língua antiga, o bastão acabou se tornando um bem de toda a humanidade. Trata-se de uma peça de madeira maciça, de origem vegetal indefinida, com tamanho e diâmetro em proporção áurea e de cor encarnada. O atributo maravilhoso deste artefato é não permitir os movimentos do mais hábil manejador, e de igual maneira não permitir o manejo do mais inábil.
    Quem o empunha tem sua vontade anulada no mesmo instante – a peça se movimenta nas direções estabelecidas por uma vontade universal ou natural, pela vontade do próprio bastão, diziam alguns. A peça é quem conduz os movimentos corporais de quem o manuseia, em golpes de sacrifício, em leves acrobacias, sempre de maneira inédita e inequívoca. As mãos do soldado que o conduz são conduzidas, tendo ele que adaptar seus gestos, sua destreza e seus impulsos às orientações do objeto assim que ele é tocado, desencadeando assim seus movimentos simétricos.
    Diz-se que a ordem de trabalho do objeto já está em algum lugar escrita, e que o bastão de simetria, perfeito em sua performance, reproduz um ordenamento divino. Alguns povos perceberam neste ordenamento um verdadeiro oráculo ou guia. O bastão já foi tido como uma forma de compreensão do Todo e como cura para as convalescências do corpo e do espírito.
    Muitos reis já tentaram utilizar o artefato maravilhoso em suas tenebrosas guerras, na certeza de saírem-se vencedores, bastando ter consigo uma ferramenta que previsse a marcha da imensidão à sua frente. O que não perceberam foi a inutilidade do bastão em conflitos tais, ou mesmo para ferir o adversário, pois a peça se recusava a qualquer movimento fora dos seus princípios secretos. Logo perceberam que, em lugar da guerra, o bastão de simetria servia muito mais e melhor para a dança.

[2009]

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Milon de Crotona

Milon de Crotona foi o mais famoso atleta grego, seis vezes vencedor nos Jogos Olímpicos e sete vezes nos Jogos Píticos. Certa ocasião deu a volta ao estádio com um touro ao ombro, e ao chegar ao fim matou-o com um soco e comeu-o inteirinho durante o dia. Célebre não só pela sua desmesurada força física como pela inteligência e cultura. Foi um dos grandes matemáticos da escola de Pitágoras.

trecho adaptado de O Minotauro, Monteiro Lobato, Editora Globo, 2011.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Sem o sexo

Sem o sexo haveria muito menos coisas a fazer. Não teríamos joalherias, não bordaríamos rendas, não serviríamos a comida em travessas de prata, não ergueríamos quartos de hotel em pontões sobre lagoas tropicais. A maior parte da economia deixa de fazer sentido sem o sexo como força motora ou agente organizador. As energias dos pregões, os vestiários com folhas de ouro da Dior na Bond Street, os encontros no Museu de Arte Moderna, os bacalhaus negros servidos no terraço dos restaurantes japoneses – para que serve tudo isso senão para ajudar nos processos que acabarão por levar duas pessoas a fazer amor num quarto escuro enquanto sirenes gritam na rua abaixo?

Allain de Botton. Como pensar mais sobre sexo. Trad. Cristina Paixão Lopes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 141.