segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Bird

Charlie "Bird" Parker (1920–1955), o grande inquestionável gênio do jazz moderno, é mais do que um sax alto. Ele foi um revolucionário da música, cujas idéias dominaram praticamente tudo o que já foi escrito em jazz moderno desde o início dos anos 1940. Ele também foi uma alma vulcânica, cujas erupções jorravam, e ainda jorram, arrepios de admiração pela espinha de ouvintes e músicos. Seu caráter revolucionário deliberado fez obscurecer, temporariamente, suas raízes tradicionais: pois o que Parker toca é o blues não adulterado mais down que se pode conceber. Ele está para o jazz dos anos 1940 e 1950 assim como Armstrong está para a fase anterior. E essa figura quintessencial do jazz é, como Armstrong, originária do lumpemproletariado – nesse caso de Kansas City –, mas também, diferentemente de Armstrong, uma pessoa controvertida e deslocada. Um nômade, um drogado, um infeliz, um andarilho sem raízes que morreu aos 35 anos, o Rimbaud do jazz moderno.


HOBSBAWM, Eric J. História Social do Jazz. Trad. Angela Noronha. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 164-5


domingo, 23 de outubro de 2011

Machismo

“(...) a verdade é que as mulheres sempre tiveram um poder desmesurado sobre os homens, e muitos de bom grado prefeririam o inferno e todos os seus diabões a passar de novo pelo que lhes fez passar alguma mulher. O próprio machismo se voltou contra os machões, tornou o homem prisioneiro dele mesmo, obrigado a não chorar, não brochar, não afrouxar, não pedir penico. Aquilo que, numa primeira visão, oprimia somente as mulheres oprimia mais os homens, que até hoje vivem cercados por um cortejo de mulheres fantasmagóricas, reais e imaginárias, sempre prontas a esqueartejá-los, se o pegarem fora desses padrões. E não adianta psicamálise, nem ficar arrotando liberações. Eles têm medo, eme-é-dê-ó, cagam-se de medo. Medo, teu nome é macho, não disse o Bardo, mas digo eu. Quanta mulher não comeu o homem que quis, apenas porque ele não podia recusar uma mulher? Uma mulher se tranca com um homem num quarto e diz que ele vai comer ela. Ele tem que comer, a não ser que ela seja o corcunda de Nôtre Dame. Até mesmo recusar uma mulher obedece a normas, porque é estabelecido o direito de ela se ofender, se a recusa for feita fora das normas. Por exemplo, ‘você é feia, e eu não vou lhe comer’, não se diz uma coisa dessas a uma mulher. Para não fazer uma inimiga mortal, o recusador tem que ser artista. Já a mulher pode recusar perfeitamente e mesmo nos piores termos possíveis — ‘você nunca, tá?’ —, as mulheres sabem do que eu estou falando, sou uma feminista esclarecida-progressista, sou um grande homem fêmea.”

RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. p. 67 (Col. Plenos Pecados)



terça-feira, 11 de outubro de 2011

Programação da Semana de Ciências Sociais - FSA

Quando? 17 a 22/10
Onde? Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras - Centro Universitário Fundação Santo André.
Av. Príncipe de Gales, 1485 - Santo André - SP

Programação:

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Encontro casual



A condição mortal implica sempre uma divisão, um dilaceramento e um encadeamento de eventos trágicos. Essa duplicidade aparece na sua versão mais nítida no caso de Édipo: inocente e culpado; sábio e louco; poderoso e miserável. Nenhum de seus atos foi intencional, mas ele é o culpado de todos. (...) A condição de Édipo é extremamente significativa: a desgraça primordial do homem é ter nascido; sua culpa fundamental é por existir. A partir daí, como administrar o destino?

Franklin Leopoldo e Silva. Felicidade: dos filósofos pré-socráticos aos contemporâneos. São Paulo: Editora Claridade, 2006. p. 17.


No primeiro volume de Parerga und Paralipomena reli que todos os fatos que podem ocorrer a um homem, desde o instante de seu nascimento até o de sua morte, foram prefixados por ele. Assim, toda negligência é deliberada, todo casual encontro, uma hora marcada, toda humilhação, uma penitência, todo fracasso, uma misteriosa vitória, toda morte, um suicídio. Não há consolo mais hábil que o pensamento de que escolhemos nossas desgraças; essa teleologia individual nos revela uma ordem secreta e prodigiosamente nos confunde com a divindade.

Jorge Luis Borges. "Deutsches Requiem". In: O Aleph. São Paulo: Editora Globo, 1999. p. 48.



segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Carta de Mário a Carlos

Trecho de carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond, sobre Anatole France (um dos escritores favoritos da juventude do escritor mineiro):


Anatole ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é uma decadência, é o fim duma civilização que morreu por lei fatal e histórica. Não podia ir mais pra diante. Tem tudo que é decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante. Bondade fingida porque é desprezo, desdém ou indiferença. Dúvida passiva porque não é aquela dúvida que engendra a curiosidade e a pesquisa, mas a que pergunta: será? irônica e cruza os braços. E o que não é menos pior: é literato puro. Fez literatura e nada mais. [...] escangalhou os pobres moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando da felicidade, duvidando do amor, duvidando da fé, duvidando da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados, horrorosos. Isso é que esse filho da puta fez.



SANTIAGO, Silviano. "Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil". Alceu, Revista de Cumunicação, Cultura e Política, v. 5, n. 10, jan./jun.2005


terça-feira, 6 de setembro de 2011

Doutrina das cores

Por mais que pensem de modo diferente, observadores da natureza dignos de crédito concordam que tudo o que aparece, tudo o que se manifesta como fenômeno, deve indicar ou expor uma cisão originária, que pode ser unificada, ou por uma unidade primordial, que pode ser cindida. Cindir o que está unido, unificar o que está cindido é a vida da natureza, eterna sístole e diástole, eterna síncrese e diacrise, inspiração e expiração do mundo, no qual vivemos, criamos e somos.


GOETHE, Johann Wolfgang Von. Doutrina das Cores. Trad. Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993. p. 132


quinta-feira, 21 de julho de 2011

Conversa com Andrés Neuman


Na última Feira Literária Internacional de Paraty, os escritores Andrés Neuman e Michael Sledge foram os convidados para compor a mesa intitulada 'Viagens Literárias'. O primeiro, argentino radicado na Espanha, foi falar de seu livro O viajante do século, seu único título lançado no Brasil até agora. 

* * *

Na saída do evento, consegui trocar algumas palavras com Andrés. Pedi para que ele assinasse meu exemplar de Bariloche, uma novela curta sobre um lixeiro solitário que tem como hobby montar quebra-cabeças e suas relações com o colega de trabalho e melhor amigo. E com a mulher deste.

"Estão vendendo Bariloche nesta livraria aqui?", ele perguntou, apontando para a livraria oficial do evento. "Não, esse eu comprei faz tempo" "E como você conseguiu este livro no Brasil?" "Importei, pela internet", e fui explicando para ele sobre a aquisição e leitura de Bariloche, livro inédito no Brasil, lançado na Espanha pela tradicional Anagrama. "Sou muito fã de Bariloche", eu disse, "É um livro muito lírico". Ele devolveu com um sorriso: "A intenção era essa, fazer um livro ao mesmo tempo lírico e sórdido. Como é seu nome?". 

Enquanto ele assinava meu livro, perguntei: "Andrés, você chegou a conhecer o Bolaño?"; fez cara de surpreso e respondeu: "Sim, conheci! Era um homem muito... sarcástico!" "E ele tinha aquela voz de fumante?" (olha só, com tanta coisa para perguntar, na hora me veio isso, a voz de fumante do cara que escreveu 2666). Outro sorriso: "Sim, uma voz grave, pois fumava muito. Era uma grande presença, muito sarcástico, bom de conversa, com muito assunto" "Um homem muito grave, deve ter sido" "Não, Lucas, nem tão grave, até que bem humorado - e sarcástico", fez uma pausa, "e culto, um homem muito culto".

Ele terminou de assinar, conferiu a página de créditos, ensaiei perguntar sobre seu editor, Jorge Herralde, também figura da minha admiração. Perguntou sobre meu emprego, com que trabalhava, e disse: suspeitei que trabalhasse com livros, apertou minha mão e desejou-me sorte.



segunda-feira, 18 de julho de 2011

The Canary Murder Case II

É terrível, minha tia me convida para o seu aniversário, compro de presente um canário pra ela, chego lá não tem ninguém, meu calendário é defeituoso, na volta o canário canta aos montes no bonde, os passageiros entram em estado de cólera, tiro o bilhete do animal para que o respeitem, ao abaixar-me dou com a gaiola na cabeça de uma senhora que me mostra os dentes, chego em casa banhado de alpiste, minha mulher fugiu com o escrivão, caio duro no saguão e esmago o canário, os vizinhos chamam a ambulância e o levam em uma maca, fiquei a noite inteira jogado no saguão comendo o alpiste e ouvindo o telefone na sala, deve ser minha tia ligando, e liga pra que eu não me esqueça do seu aniversário, ela sempre conta com o meu presente, minha pobre tia.


In: CORTAZAR, Julio. Ultimo Round. 3ª ed. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1972.. (tradução nossa).


terça-feira, 5 de julho de 2011

Bariloche

Penso que melhor se forma uma família para tentar matar a orfandade de que cada um sofre desde que nasce. Por isso me sentia tão só quando via como mamãe levava sopa e pão ao velho e ele não a olhava nos olhos, muito concentrado na chaminé como que imaginando sua própria fogueira, tentando se acostumar às chamas ainda que fosse com os olhos que negava à mamãe. Todos nos sentíamos muito sós.

(...)

Neuman, Andrés. Bariloche. Barcelona: Anagrama, 1999. Colección Compactos. p. 113. (tradução nossa)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Aos 23

Aos 23 anos, Nelson Rodrigues trabalhava para Roberto Marinho no jornal O Globo. Aos 23, Rimbaud já era Rimbaud e já tinha deixado de sê-lo. Com a mesma idade, Einstein já havia se graduado em Física. Kafka formou-se em Direito aos 23 anos.

Aos 23 anos, Chet Baker entrou pra banda de Gerry Mullingan e gravou sua primeira versão de "My Funny Valentine", música que o consagraria pra sempre na história do jazz. John Coltrane, com essa idade, deixou o sax alto de lado pra tocar sax tenor, seu melhor instrumento. Miles Davis, aos 23, apresentava-se pela primeira vez na Europa, no Paris Jazz Festival.

John Lennon gravou seu primeiro álbum com o The Beatles aos 23 anos. Beethoven começou a publicar suas obras e a perder a audição aos 23.

Com 23, Godard já escrevia pro Cahiers du Cinema, famosa revista francesa de cinema da qual ele foi um dos fundadores, publicação responsável por uma revolução na maneira de se fazer filmes na França e no mundo.

Aos 23 anos, Cassius Clay já havia se convertido ao Islã e mudado de nome para Muhammad Ali, derrotara Sonny Liston por duas vezes e se preparava para defender o título de campeão mundial pela segunda vez, na luta contra Floyd Patterson. No mesmo ano de 1965, Jimi Hendrix descobrira, graças a Frank Zappa, o pedal de wah-wah, e um, ano depois, aos 23, gravou o single "Hey Joe".

23 anos foi tempo de jejum pelo qual o Corinthians teve de passar para saborear melhor o campeonato mais importante de sua história, em 1977. 23 anos depois, em 2000, conquistou o título do mundial de clubes da FIFA.

23, este número primo. 23 pares de cromossomos.

O Salmo mais famoso da Bíblia, aquele que diz “O Senhor é meu pastor e nada me faltará”, é o Salmo 23.

O Capítulo 23 do Evangelho de Lucas relata a morte de Cristo na cruz. No versículo 23, o povo pede aos gritos exaltados a crucificação do Nazareno.

Há 23 anos atrás vivíamos o ano de 1988, o muro de Berlim em pé, as Torres Gêmeas de Nova York em pé, regime do Apartheid vivo, Madre Teresa viva, Marlon Brando vivo, um monte de gente morta e um monte de gente viva.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Pergunta

No começo do conto "O Burrinho Pedrês", primeiro do livro Sagarana, de Guimarães Rosa, quando o narrador conta que "a estória de um burrinho, como a historia de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida", estaria ele dialogando com um dos motivos principais da história de Ulisses, de James Joyce, passada num só dia da vida de Leopold Bloom?

domingo, 10 de abril de 2011

Cortázar & Jung

De todos os assuntos, de todos os temas, de todas as matérias dignas de uma boa reflexão, ficou determinado em algum momento que sempre algo chamaria mais a nossa atenção mais do que outro algo qualquer.
            O que me chamou a atenção foi a quantidade de vezes em que Julio Cortázar, nas entrevistas concedidas a Ernesto González Bermejo, menciona Carl Gustav Jung.

Foram feitas investigações psicanalíticas de meus contos tanto pela linha freudiana quanto junguiana e as duas são igualmente fascinantes. Mais a linha junguiana, que acho que se adapta muito mais ao universo da criação literária.
                Esses autores de teses ou de monografias viram o que no princípio eu não via, quer dizer, a repetição, a recorrência de certos temas, a presença de certas constantes.

Sobre o tema do duplo em sua obra:

Jung poderia falar de uma espécie de arquétipo. Não se esqueça de que os duplos – não sei se explicitamente em Jung, mas, em todo caso, nas cosmogonias, nas mitologias do mundo –, o duplo, os personagens duplos, os gêmeos ilustres, como Rômulo e Remo, Castor e Pólux, os deuses duplos, são uma constante do espírito humano como projeção do inconsciente convertida em mito, em legenda.

            Sobre sua obsessão com metrôs:

O meu fascínio deve estar também no fato de o metrô ser subterrâneo, o que o conecta a arquétipos junguianos: é o inferno. O metrô é um inferno que visitamos em vida.

            Sobre a presença de animais como tema de suas histórias:

No meu território fantástico há, efetivamente, uma grande circulação de animais. Acredito que isso diz respeito também ao mundo onírico. Estão aí incluídos alguns arquétipos junguianos: o tema do touro e o tema do leão tendem a voltar nos sonhos e são sempre símbolos sexuais, ou de vontade ou de poder. Em mim, isso se dá no plano literário.

Sobre a identificação do leitor com seus contos:

Acredito que vários de meus contos atraem por serem uma espécie de eco de seu subconsciente. Se Jung tem razão e compartilhamos um inconsciente coletivo, é bastante lógico que seja assim.

            Por fim, sobre o emblemático conto “Casa Tomada”, de Bestiário:

Eu acredito que o interesse das pessoas pelo conto tem a ver não apenas com o prazer literário que possa proporcionar a elas, mas com alguma coisa que toca suas próprias experiências profundas. Aquilo que dizíamos de Jung e do inconsciente coletivo.

           

BERMEJO, Ernersto González. Conversas com Cortázar. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. 132 p.

sexta-feira, 11 de março de 2011

A Biblioteca de Babel

(...)

Não me parece inverossímil que em alguma estante do universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem - só um, ainda que seja, há milhares de anos! - haja o examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não são para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, ainda que meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que em um instante, em um ser, Tu, enorme Biblioteca, se justifique.


(...)

As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente se degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população. Creio ter mencionado os suicídios, a cada ano mais frequentes. Talvez a velhice e o temor me enganem, mas suspeito que a espécie humana - a única - está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvil, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.



BORGES, Jorge Luis. "La Biblioteca de Babel" in: Ficciones. Buenos Aires: Emecé Editores, 2005. p. 105-120 (tradução nossa)

"Passage Choiseul" (1990), Erik Desmazières.

terça-feira, 8 de março de 2011

Jean-Luc Godard por Jean-Luc Godard

Normalmente acontece assim; a morte chega e vestimos o luto. Não sei exatamente por que, mas eu fiz o contrário. Primeiro eu vesti o luto, mas a morte nunca chegou. 02:51

De certa forma, o medo é filho de Deus, redimido na sexta-feira santa. Ele não é bonito, zombado, amaldiçoado, renegado por todos. mas não entenda mal, ele cuida de toda a agonia mortal, ele intercede pelos homens. 08:29

Ninguém fala a exceção. Todos falam a regra. Ela não pode ser falada. (...) A regra quer a morte da exceção. A regra da Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce sob nossos pés. 08:50

A imagem é pura criação da mente. Não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades distantes. Quanto mais os laços entre essas duas realidades são distantes e certos, mais forte será a imagem. Duas realidades sem laços não podem ser aproximadas de forma proveitosa. Nenhuma imagem é criada. E duas realidades contrárias não se conciliam uma com a outra. Uma imagem não é forte por ser brutal ou fantástica, mas porque a associação de ideias é distante. Distante e justa.
10:59

O espírito tem poder apenas na medida em que contempla o negativo face a face. 22:01

O que é trágico nas realções sexuais é a virgindade das almas. 26:11

A arte é como o fogo: nasce daquilo que queima. 33:55

Uma folha em branco é o verdadeiro espelho do homem. 36:58

Se pudermos mostrar que a carne é uma noção fundamental que não é nem união nem composição de duas substâncias mas pode ser concebida em si mesma. Se o visível tem uma relação consigo mesmo que me atravessa e me constitui como eu vejo. Observando este círculo que não sou eu quem crio, mas que cria a mim, essa espiral do visível com o visível pode seguir em frente e animar outros corpos, assim como o meu. E eu poderia compreender como essa onda nasce em mim como um visível adiante é simultaneamente minha paisagem. 44:11


Quando nos exprimimos, nós dizemos mais do que desejamos. Achamos que expressamos o individual, mas nós expressamos o universal. Eu tenho frio. Sou eu que digo 'eu tenho frio'. Mas não sou eu que sou ouvido. Eu desapareço entre estes dois momentos do discurso. Tudo que resta de mim é o homem com frio. E este homem pertence a todos. 46:35

Onde você vive? Na linguagem, e não posso me manter quieto. Ao falar, eu me lanço naquele lugar desconhecido, uma terra estrangeira. E subitamente me torno responsável por ela. Eu me tornei universal. 47:05

O passado não morre. Ele nem mesmo passou. 49:14

Um homem, nada além de um homem. Não melhor que nenhum outro, mas nenhum outro melhor que ele. 53:17


terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Telemorfose

"Toda a nossa realidade tornou-se experimental." p.19

"É aí, quanto tudo se dá a ver (como em Big Brother, os reality shows, etc.), que se percebe que não há mais nada a ver. É o espelho da banalidade, do grau zero, onde se faz a prova, contrariamente a todos os objetos, da desaparição do outro, e talvez mesmo do fato de que o ser humano não é fundamentalmente um ser social." p.20

"É este o objetivo mais claro da operação: a servilidade das vítimas, mas a servilidade voluntária, a das vítimas que gozam com o mal que se lhes faz, com a vergonha que se lhes impõe." p. 24-5

" (...) é no recalcamento que a sexualidade ganhou essa autoridade e essa aura de atrator estranho - manifestada, ela perde essa qualidade potencial" p. 27

"Pode ser talvez uma estratégia da mídia oferecer espetáculos mais nulos do que a realidade - hiper-reais em sua debilidade, e dando aos espectadores uma possibilidade diferencial de satisfação." p.38

"Em vista  (...) da adesão entusiástica a essa encenação da servidão experimental, pode-se adivinhar que o exercício da liberdade não é certamente um dado de base da antropologia e que o homem, se alguma vez a exerceu, não pára de se desvencilhar dela em favor de técnicas mais animais de automatismo coletivo." p. 47

"escancaramento para o abismo do corpo inteiro (...) não é também de longe sequer da história do califa que, após o strip-tease da dançarina, mandou esfolá-la viva, sempre para saber mais." p.52

"O século vinte terá visto todo tipo de crime - Auschwitz, Hiroshima, genocídios -, mas o único verdadeiro crime perfeito é, nos termos de Heidegger, "a segunda queda do homem, a queda na banalidade". p.58


BAUDRILLARD, Jean. Telemorfose. Trad.: Muniz Sodré. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Fotografia

Já viste trabalho em fotografia? Revelar uma chapa? Chapa é uma placa de vidro recoberto duma leve camada de gelatina sensibilizada, de aparência branca e opaca. Pões-na, porém, dentro do banho revelador e a imagem que existia misteriosamente oculta dentro da gelatina delineia-se aos poucos, vai ganhando contornos e nitidez, até de todo se revelar com perfeição. Tu foste para mim o que o revelador é para a chapa. Donde parecia nada existir que não fosse aridez e revolta, e orgulho e pessimismo e tédio, tu arrancaste mil qualidades preciosas e inestimáveis – amor, ternura, otimismo, alegria, bondade. Agora vejo que tudo isso existia em mim latentemente e só esperava a forte simpatia duma criatura como tu para se expandir. E sou-te grato, imensamente, por isso.

Trecho da carta de Monteiro Lobato à sua esposa, D. Maria da Pureza Natividade, em 1907.


in: Lobato, Monteiro. Cartas de amor. 1ª ed. São Paulo: Globo, 2011. p. 91

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Top 10 – Escritores alcoólatras americanos


O site Alternative Reel elegeu os 10 maiores alcoólatras da literatura americana, que na verdade são 12. Traduzi a lista e as frases célebres, que tem Edgar Allan Poe, Faulkner, Fitzgerald e um óbvio primeiro lugar.

#10 – Raymond Chandler [1888-1959]

O álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo, o terceiro é rotina. Depois disso é só tirar a roupa da garota.
 
#09 - Frederick Exley [1929-92]

Após um mês de sobriedade minhas faculdades se tornaram insuportavelmente afiadas e eu me tornei um clarividente doentio, tendo visões de lugares para os quais nunca fui. Ao contrário de alguns homens, nunca bebi para ter coragem, charme ou inteligência; eu usei o álcool precisamente porque ele era um sedativo para conferir a alegria mental produzida pela sobriedade prolongada.


#08 – Harry Crews [1935- ]

O álcool me maltratou. O álcool e eu passamos muitos, mas muitos momentos maravilhosos juntos. Nós rimos, conversamos, dançamos juntos em festas, até um dia em que levantei, a galera havia ido embora de casa e eu estava deitado no vidro quebrado com a camisa cheia de vômito, e disse, ‘ei, cara, agora é que começa o jogo’. [Nota do Editor: de acordo com notícias publicadas, Crews tem se mantido sóbrio desde 1987. Vá em frente, Harry!]

#07 – Jack Kerouac [1922-69]

Quando cresci comecei a beber. Por quê? Porque gosto do êxtase da mente.
 
#06 - Jack London [1876-1916]
  
Eu carregava uma bela excitação alcoólica comigo. A coisa se alimentava por si própria e inflamava violentamente. Não tinha hora, todos os dias ao acordar, que eu não quisesse um drinque. Comecei a apressar a realização das minhas mil palavras diárias para beber quando somente quinhentas palavras haviam sido escritas. Não demorou muito até começar o trabalho das mil palavras já com um drinque na mão.

#05 - F. Scott Fitzgerald [1896-1940]

Primeiro você toma um drinque, aí o drinque toma um drinque, depois o drinque toma você.
 
#04 - Edgar Allan Poe [1809-49]

Absolutamente não tenho nenhum prazer nos estimulantes que às vezes tomo loucamente. Não foi na busca pelo prazer que eu arrisquei a vida e a reputação e a razão. Foi a tentativa desesperada de escapar das memórias tortuosas, de um senso de insuportável solidão e um pavor de alguma estranha ruína iminente.

#03 - Empate: William Faulkner [1897-1962] & Dorothy Parker [1897-1967]

Não há nada como um uísque ruim. Alguns uísques só surgem para serem melhores que outros. Mas um homem não deve brincar com bebida até os 50 anos; aí então ele é um maldito babaca se não o faz. — Faulkner
 
Prefiro ter uma garrafa na minha frente que uma lobotomia frontal. — Parker

#02 - Empate: Ernest Hemingway [1899-1961] & Hunter S. Thompson [1937-2005]

Um homem inteligente às vezes é forçado a ficar bêbado para perder tempo com suas idiotices — Hemingway

Odeio defender drogas, álcool, violência ou insanidade a qualquer um, mas eles sempre têm trabalhado em meu favor. — Thompson

#01 - Charles Bukowski [1920-94] — A escolha da audiência!

Beber é algo emocional. Isso sacode você para fora da padronização da vida cotidiana, fora de toda aquela mesma coisa de sempre. Isso te arranca do seu corpo e da sua mente e te joga contra a parede. Tenho a sensação que beber é uma forma de suicídio na qual você está autorizado a retornar à vida e começar tudo de novo no dia seguinte. É como se matar, e depois você renasce. Eu acho que vivi umas dez ou quinze mil vidas até agora.


  Quem se propõe a fazer um Top 10 brasileiro?