Mesmo assim, apesar de sua universalidade formal e da
vertiginosa amplitude de seu leque de alusões, a estrutura da arte de Borges
tem graves lacunas. Somente uma vez, no conto “Emma Zunz”, Borges criou uma
mulher plausível. Em toda a obra restante, as mulheres são os objetos
indistintos de fantasias ou recordações masculinas. Mesmo entre os homens, as
linhas de força imaginativa numa ficção de Borges são extremamente
simplificadas. (…) Quando aparece uma terceira pessoa, será quase
invariavelmente, obliquamente, a alusão a uma presença, uma lembrança ou um
rápido vislumbre instável na retina. O espaço de ação onde se move uma figura
de Borges é mítico, nunca social. Quando se introduz um local, uma posição ou
uma circunstância histórica, aparece em toques soltos, exatamente como num
sonho. (…) São essas lacunas, essas intensas especializações na consciência,
penso eu, que explicam as desconfianças de Borges em relação ao romance. Ele
volta ao tema com frequência. Afirma que um autor obrigado pela visão fraca a
compor mentalmente e, por assim dizer, de um só impulso, deve se restringir a
narrativas muito breves. E é verdade que as primeiras “Ficciones” importantes se seguem ao grave acidente que Borges
sofreu em dezembro de 1938. Ele também julga que o romance, como o poema épico
que o precedeu, é uma forma transitória: “O romance é uma forma que pode
passar, que certamente passará, mas não creio que o conto passará […] Ele é
muito mais antigo”. É o contador de histórias na estrada, o skald, o narrador dos pampas, homens
cuja cegueira é muitas vezes uma declaração do brilho e da riqueza de vida que
viveram, que encarnam a noção de escritor de Borges. Homero é invocado amiúde
como ícone protetor. Claro. Mas é da mesma maneira provável que o romance
represente precisamente as principais dimensões faltantes em Borges. A presença
feminina bem construída, as relações das mulheres com os homens fazem parte da
essência da ficção plena. (…) Há muito de simples engenharia num romance.
STEINER, George. “Tigres no espelho” in: Tigres no espelho e outros textos da revista
New Yorker. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Biblioteca Azul, 2012. pp.
213-214.