quinta-feira, 17 de junho de 2010

Carta de Guimarães Rosa a João Condé


Prezado João Condé,

        Exigiu você que eu escrevesse, manu propria, nos espaços brancos dêste seu exemplar de "Sagarana", uma explicação, uma confissão, uma conversa, a mais extensa, possível – o imposto João Condé para escritores, enfim. Ora, nem o assunto é simples, nem sei eu bem o que contar. Mirrado pé de couve, seja, o livro fica sendo, no chão do seu autor, uma árvore velha, capaz de transviá-lo e de o fazer andar errado, se tenta alcançar-lhe os fios extremos, no labirinto das raízes. Graças a Deus, tudo é mistério.        
        Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João Condé o que é de João Condé. Assim, pois, em 1937 - um dia, outro dia, outro dia... - quando chegou a hora de o "Sagarana" ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nêle poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo. Tinha de pensar, igualmente, na palavra "arte", em tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente. Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de novelas. E - sendo meu - uma série de Histórias adultas da Carochinha, portanto. Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições - no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquêle sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe.
        Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul Eluard: “...o peixe avança nágua, como um dedo numa luva...”. Um ideal: precisão, micromilimétrica. E riqueza, oh! riqueza... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-comum; que as chapas são pedaços de carne corrompida, são pecados contra o Espírito Santo, são taperas no território do idioma. Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé, realizar é que são elas...): além dos estados líquidos e sólidos, porque não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!
        Aquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia. Um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, "pôses" - dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o ráio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a sêca. Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas.
        Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação. Restava agir. Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, "revendo" paisagens da minha terra, e aboiando para um gado. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã. O livro foi escrito - quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 fôlhas - em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945 foi "retrabalhado", em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez). Lá por novembro, contratei com uma dactilógrafa a passagem a limpo. E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde, na Livraria José Olympio. O título escolhido era "Sezão"; mas, para melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à última hora, este rótulo simples: "Contos (título provisório, a ser substituido) por Viator. Porque eu ia ter de começar longas viagens, logo após.
        Como já disse, as histórias eram doze:

I) - O BURRINHO PEDREZ - Peça não-profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio.
II) - A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO – A menos "pensada" das novelas do "Sagarana" a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945.
III) - DUELO - Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou dito para a anterior: a história foi meditada e "vivida", durante um mês, para ser escrita em uma semana, aproximadamente. Contudo, também quase não sofreu retoques em 1945.
IV) - SARAPALHA - Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto.
V) - QUESTÕES DE FAMILIA - História fraca, sincera demais, meio autobiográfica, mal realizada. Foi expelida do livro e definitivamente destruída.
VI) - UMA HISTORIA DE AMOR - Um belo tema, que não consegui desenvolver razoávelmente. Teve o mesmo destino da novela anterior.
VII) - MINHA GENTE - Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.
VIII) - CONVERSA DE BOIS - Aqui, houve fenômeno interessante, o único caso, nêste livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever um conto de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro. Penosamente, urdi o enrêdo, e, um sábado, fui dormir, contente, disposto a pôr em caderno, no domingo, a história (n. 1). Mas, no domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha, espécie de Minerva, outra história (n. 2) - também com carro, bois, carreiro e guia - totalmente diferente da da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e me esquecida outra, da anterior. Em 1945, sofreu grandes retoques, mas nada recebeu da versão préhistórica, que fôra definitivamente sacrificada.
IX) - BICHO MAU - Deixou de figurar no "Sagarana", porque não tem parentesco profundo com as nove histórias dêste, com as quais se amadrinhara, apenas por pertencer à mesma época e à mesma zona. Seu sentido é outro. Ficou guardada para outro livro de novelas, já concebido, e que, daqui a alguns anos, talvez seja escrito.
X) - CORPO FECHADO - Talvez seja a minha predileta. Manuel Fulô foi o personagem que mais "Humanamente" comigo, e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existéncia. Assim, viveu ele para mim mais umas 3 ou 4 histórias, que nao aproveitei no papel, porque não tinham valor de parábolas, não "transcendiam".
XI) - SÃO MARCOS - Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro.
XII) - A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA - História mais séria, de certo modo síntese e chave de tôdas as outras, não falarei sôbre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o coméço do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir.

Por ora, Conde, aqui está o que eu pude relembrar, acerca do "Sagarana". Se Você quiser, eu poderei contar, mais tarde -, num exemplar da 2ª edição - algumas passagens históricas, ocorridas entre o dia 31 de dezembro de 1937 e a data em que o livro foi entregue à Editora umversal. Serve?

Com o cordial abraço do
Guimarães Rosa.


In: GUIMARÃES ROSA, João. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984. (Col. Mestres da Literatura Contemporânea)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Oração a São Jorge

Um poema, como pode-se perceber:

Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge
para que meus inimigos,
tendo pés não me alcancem,
tendo mãos não me peguem,
tendo olhos não me vejam,
e nem em pensamentos eles possam me fazer mal.

Armas de fogo o meu corpo não alcançarão,
facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar,
cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.

(...)
Glorioso São Jorge, em nome de Deus,
estenda-me o seu escudo e as suas poderosas armas,
defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza,
e que debaixo das patas de seu fiel ginete
meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós.

Assim seja com o poder de Deus,
de Jesus
e da falange do Divino Espírito Santo.
São Jorge Rogai por Nós.